O porteiro Paulo Alberto da Silva Costa passou três anos preso, sendo investigado em 62 ações penais, a partir apenas do reconhecimento fotográfico. O trabalhador nunca teve prisões ou acusações anteriores, mas teve fotos retiradas de redes sociais e incluídas no álbum e no mural de suspeitos da Delegacia de Belford Roxo (RJ). A justificativa foi que sua aparência física era compatível com a descrição apresentada por vítimas de crimes. Costa é um homem negro de 36 anos e estava preso desde março de 2020, no Complexo de Bangu. Em maio deste ano, três anos depois, A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que o trabalhador fosse solto imediatamente.
Para o advogado criminalista Filipe Silveira, o caso acima pode ser analisado como um claro exemplo de injustiça epistêmica. Em síntese, significa um tipo de injustiça envolvida em situações em que se desconfia da palavra do outro com base em algum preconceito. O termo foi criado pela pesquisadora da Universidade de Oxford e atual professora na Universidade de Nova Iorque, Miranda Fricker.
“Revela a negativa oportunidade para alguém de contribuir à determinação dos fatos a partir de sua perspectiva. Na prática judicial, isso ocorre quando o sistema de persecução penal (Polícia, Ministério Público ou Judiciário) descartam, sem qualquer justificativa, a versão apresentada por um acusado ou por uma testemunha, invertendo, na prática, o ônus probatório (que é sempre da acusação). Assim, o risco de se contribuir à uma condenação injusta deixa de representar uma real preocupação do sistema processual penal”, explica Silveira.
O criminalista exemplifica que, em 1999, foi lançado o filme “O Talentoso Ripley” que conta a história de Tom Ripley. Este assassina seu amigo e assume sua identidade, mantendo, nada obstante, a convivência com a família da pessoa assassinada. No decorrer da história, a então namorada da pessoa assassinada passa a desconfiar que Tom Ripley seja o assassino de seu amado. Apesar das evidências por ela demonstradas, chega a ouvir de seu sogro a expressão “existe a intuição feminina e existe a verdade dos fatos”. “Essa frase demonstra como a visão de uma pessoa, por mais que seja baseada em fatos, pode ser descartada por puro preconceito, seja em razão do gênero, seja por razões raciais, seja pelo status social ocupado na sociedade”, analisa Silveira.
Segundo ele, a injustiça epistêmica pode corroborar com a impunidade de criminosos e, muitas vezes, a culpabilização da vítima. “O processo nada mais é do que um ambiente científico para reconstrução de uma história. Assim, se o processo penal, por exemplo, descarta elementos probatórios sem quaisquer explicações lógicas, perde-se sua legitimidade como modelo adequado para alcançar a verdade possível. Perde sua razão de ser. E se torna um local inapropriado para sua principal finalidade”, considera.
“As consequências do frágil modelo epistemológico utilizado em um processo são muitas. Pode-se condenar um inocente, assim como pode-se absolver um culpado. A atenção aos pressupostos de epistemologia, sobretudo, a necessidade de tomada de decisões racionais, observando o modelo legal que é imposto, garante a obtenção de melhores resultados”, defende.
“Com relação à vítima, sobretudo em crimes de natureza sexual, a injustiça epistêmica também se fez e faz presente na sociedade brasileira. Até poucos anos atrás, em casos de estupro ou agressões sexuais, não raro se utilizavam modelos de interpretação anacrônicos para julgar os casos. Por exemplo, ao invés de se observar os fatos tais como acontecidos, concentrava-se em tentar desacreditar a vítima, seja pela sua roupa, pela sua aparência ou pelo seu comportamento”, relembra Silveira.
Questionado sobre como a classe advocatícia enfrenta essas injustiças, o criminalista explica que “no que se refere, especificamente, aos advogados, uma forma de enfrentar esses problemas reside na demonstração clara, afastada do senso comum, do equívoco na avaliação das provas, apontando, diretamente, para o elemento de prova que foi descaracterizado sem maiores razões”.
“No entanto, ao fim, o problema da epistemologia também é cultural. É necessário cada vez mais inserirmos esse debate na vida dos tribunais para nos afastarmos de uma aplicação do direito meramente subjetiva e nos aproximarmos de um direito mais técnico, mais lógico e mais racional”, defende.
Texto: Assessoria de imprensa FS Advocacia
Para o advogado criminalista Filipe Silveira, o caso acima pode ser analisado como um claro exemplo de injustiça epistêmica. Em síntese, significa um tipo de injustiça envolvida em situações em que se desconfia da palavra do outro com base em algum preconceito. O termo foi criado pela pesquisadora da Universidade de Oxford e atual professora na Universidade de Nova Iorque, Miranda Fricker.
“Revela a negativa oportunidade para alguém de contribuir à determinação dos fatos a partir de sua perspectiva. Na prática judicial, isso ocorre quando o sistema de persecução penal (Polícia, Ministério Público ou Judiciário) descartam, sem qualquer justificativa, a versão apresentada por um acusado ou por uma testemunha, invertendo, na prática, o ônus probatório (que é sempre da acusação). Assim, o risco de se contribuir à uma condenação injusta deixa de representar uma real preocupação do sistema processual penal”, explica Silveira.
O criminalista exemplifica que, em 1999, foi lançado o filme “O Talentoso Ripley” que conta a história de Tom Ripley. Este assassina seu amigo e assume sua identidade, mantendo, nada obstante, a convivência com a família da pessoa assassinada. No decorrer da história, a então namorada da pessoa assassinada passa a desconfiar que Tom Ripley seja o assassino de seu amado. Apesar das evidências por ela demonstradas, chega a ouvir de seu sogro a expressão “existe a intuição feminina e existe a verdade dos fatos”. “Essa frase demonstra como a visão de uma pessoa, por mais que seja baseada em fatos, pode ser descartada por puro preconceito, seja em razão do gênero, seja por razões raciais, seja pelo status social ocupado na sociedade”, analisa Silveira.
Segundo ele, a injustiça epistêmica pode corroborar com a impunidade de criminosos e, muitas vezes, a culpabilização da vítima. “O processo nada mais é do que um ambiente científico para reconstrução de uma história. Assim, se o processo penal, por exemplo, descarta elementos probatórios sem quaisquer explicações lógicas, perde-se sua legitimidade como modelo adequado para alcançar a verdade possível. Perde sua razão de ser. E se torna um local inapropriado para sua principal finalidade”, considera.
“As consequências do frágil modelo epistemológico utilizado em um processo são muitas. Pode-se condenar um inocente, assim como pode-se absolver um culpado. A atenção aos pressupostos de epistemologia, sobretudo, a necessidade de tomada de decisões racionais, observando o modelo legal que é imposto, garante a obtenção de melhores resultados”, defende.
“Com relação à vítima, sobretudo em crimes de natureza sexual, a injustiça epistêmica também se fez e faz presente na sociedade brasileira. Até poucos anos atrás, em casos de estupro ou agressões sexuais, não raro se utilizavam modelos de interpretação anacrônicos para julgar os casos. Por exemplo, ao invés de se observar os fatos tais como acontecidos, concentrava-se em tentar desacreditar a vítima, seja pela sua roupa, pela sua aparência ou pelo seu comportamento”, relembra Silveira.
Questionado sobre como a classe advocatícia enfrenta essas injustiças, o criminalista explica que “no que se refere, especificamente, aos advogados, uma forma de enfrentar esses problemas reside na demonstração clara, afastada do senso comum, do equívoco na avaliação das provas, apontando, diretamente, para o elemento de prova que foi descaracterizado sem maiores razões”.
“No entanto, ao fim, o problema da epistemologia também é cultural. É necessário cada vez mais inserirmos esse debate na vida dos tribunais para nos afastarmos de uma aplicação do direito meramente subjetiva e nos aproximarmos de um direito mais técnico, mais lógico e mais racional”, defende.
Texto: Assessoria de imprensa FS Advocacia